quarta-feira, 1 de março de 2017

Voltei ao crochê,
anos após a última touca tecida.

E foi como andar de bicicleta.
Ponto a ponto, tudo ainda estava ali.
Tudo sabido, como se ontem.

Mas um novo: estado meditativo.
Agulha na lã, no buraco, ponto e trama
enquanto passa o tempo.

O vestido que usava era de malha,
da China. 
Lembrei que a dimensão do tempo se perdeu.

Antes se via nas coisas , o tempo gasto.
A demora na roupa tricotada.
As horas empenhadas no plantar do tomate.

Hoje, o que vejo, lembrada pelo crochê:
um chinês, numa fila de chineses lado a lado,
fazendo tudo muito lápido.

Não vejo tempo neste vestido, no tomate,
na boneca, nos utensílios a perder de vista
nas prateleiras das lojas made in China.

Volto ao crochê, voltemos ao crochê
e a um tempo que não volta.

Teci mais que um xale, teci uma existência
com dimensão de tempo. 

Sem tempo, somos apenas tridimensionais.

Sem tempo, não há poesia.

Voltemos ao crochê.

São tantos os caminhos
e todos pra somente um único lugar.

Me entristeço de não ter o vigor
da palavra exata e arrebatadora.
No fundo sei, que se deixo ir,
tudo chega lá, aonde deveria.

E será que peco?

Profissão de fé

Quero conhecer Mianmar,
mas perdi o emprego.

A diarista lembra que devo comprar um aspirador.
Deixa o pó aí, a ele retornaremos.

Um casamento que cai,
despenca cada sexta-feira.
E eu, como num Cândido ou o otimismo,
só vejo é Deus, nisso tudo.
Lavo a louça.
Pela janela,
vem súbito o desejo de ver algo voando.
Algo que não voa.

E o desejo em si é tão violento,
e imenso, que ainda que nada voe

me basta.