domingo, 6 de março de 2011

Vício

com a necessidade
de sentir você em mim
sofro de abstinência.

TecaMiranda

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Cura

para sentir-me em ti
vencerei a abstinência
com paciência.

Lu Cañete

Para P. V.

A dor do escritor não era minha. Já o tinha visto desfiar o passado dolorido do pai, tão rude, desabado sobre um menino frágil.
A dor do escritor não é minha. Mas me dói. Nunca chego perto do escritor, a dor dele me assusta. E depois das aulas , das palestras, dos lançamentos que assisto, fico horas em casa conversando com o escritor maltratado, privado de infância, que ele conta ter sido. Eu afago aquela criança de pernas finas, eu lhe dou livros e lhe conto histórias. Eu leio as histórias do escritor, que vieram de ausências, diz ele. Da falta que lhe preenche.
Mas quando reencontro o escritor, me encolho. A dor dele me murcha, cresce sobre minhas palavras, me retrai. E não encontro a docilidade de quando o leio. E não venço os poucos metros entre meu coração e o do escritor. Ele, presente, é também só ausência.

Olimpíada de inverno

Sobre o gelo, distante. Deslizam pernas e braços e coisa esvoaçantes e incompreensíveis. Voam os sonhos da infância que nunca criaram raízes e vêm pousar sobre meu joelho direito e encarar-me no olhos. A dizer: do que deixei, do que não acreditei, do que plantei e ninguém me ensinou a regar. É bela a lâmina afiada sobre a água sólida, é bela a perna da patinadora que não entregou os pontos. E duro reabrir o sulco, encarar a fenda deixada e nunca cicatrizada. Sentir como uma bolada de neve na cara o susto do tempo que já não te permite. E esperar derretê-la, fazer-se mais leve, maleável, tranformada a ponto de novos sonhos evaporáveis.
Aqui amanso um par de rosas selvagens incomodadas, inaptas para jardins. Não tirarei espinhos epidérmicos, pra melhor devorar teu morango partido, colhê-lo da haste em riste e roê-lo com a língua do sonho. Por isso mantidos os cardos. Senão tudo desfalece como chocolate nos trópicos. E não servem, ao desfolhar-se assim o principal da copa. Mas domarei a selvageria das rosas pra que sobrevivam no diminuto de um vaso e endereçadas ao jardim sintam-se ,apenas pelo contraste, livres como condor andino.Não sei se perfume, se raiz, se pétala. Algo sempre fica na ilusão da identidade, na ficção do que se é.
Corro o corpo sobre sopros de ti, de tudo que não alcanço e inexplicavelmente me encontra. Plantada rosa em água e vaso. Vazando a vida pelo canto direito do olho esquimó. Espero algo: notícia que virá em asas de passarinhos bem pequenos. Cada palavra em uma pena, pluma , leve a montar um pássaro como o dos poemas persas. Analfabeto e compreensível.

terça-feira, 1 de março de 2011

Há cem anos

É mais fácil ser mulher hoje, do que há cem anos. Já se pode ter o que Virginia reclamava: um teto só seu e quinhetas libras ao ano. É mais fácil ser mulher hoje, do que há cem anos. Orfãs, não-casadas, com irmãos ou sem
podemos existir hoje e não há cem. Se escrevo, já não sou mais como um cão tentando atuar. É mais fácil ser mulher hoje, do que há cem anos. Há coisas inventadas por mulheres, há empresas dirigidas por mulheres. E femininas jogadoras de futebol e condutoras de ônibus. É sem dúvida , mais fácil ser mulher hoje do que há cem anos. Mesmo no Irã, sob o véu do Islã, há algo mais macio. Um útero já não pesa nem produz como há um século.
Um homem já não se impõe como há dez décadas. E ainda que doa a liberdade, é mais fácil hoje do que há cem anos. Subimos montanhas, ganhamos o Nobel, cruzamos oceanos. Ainda não pisamos na lua, mas nos desdobramos, desdobráveis que somos, muito mais do que se imaginava há cem anos.

E por fim, com certo gosto, podemos revidar:
- É mais fácil pra um homem existir hoje
ou há cem anos?

flor nascente

Uma flor que nascendo parte o homem em dois. Esse era o antídoto. Fosse feito de dentro brotasse.O espanto desse nascimento vencendo o que se crê mais duro e por fim se abre em brecha de amor para o que nasce. O destino, das coisas que teriam que nascer quando já se anunciava o secar. O que feito foi pra irromper, nada impede. Só os os olhos de espanto sobre o que sabido era. Então que espanto? Não o pela coisa em si, mas o de saber que já tudo pressentimos, vem escrito em nós , ainda que poucos, ou mínimas vezes, nos dignamos a ler. A bula da vida que nos vem impressa, o espanto pelo esquecimento e o lembrar entranhados na flor nascente.