domingo, 7 de agosto de 2011

Quero #2

Quero ser serralheira,
como esse da serralheria
no caminho ao trabalho.
Um serralheiro acorda:
serralheiro.
Um serralheiro dorme:
serralheiro.
E, se o telefone toca na casa-serralheria,
ele atende:
- Serralheiro.

Mas esta que escreve:
dorme uma coisa,
acorda outra.
Trabalha no banco,
dá aulas
de uma língua estranha,
para que as pessoas
falem com gente
que não conhecem.
Escova os dentes: namorada.
Entrou no ônibus: passageira.
Passou da catraca: maestrita.
Tem reunião às 4pm: treinadora.
Casa da mãe: filha.
Hoje é dia dos pais: orfã.

Enquanto isso,
o serralheiro:
serralheiro.

Quelo #1

Quelo ser amiga de um chinês de pastelaria. Eles existem aos montes, invisíveis, pelo centro da cidade. Mas não convivem.
Nem comigo, nem com você que me lê, arrisco. Ninguém que eu conheça, conhece intimamente um chinês de pastelaria.
Nome e sobrenome, quando muito. Eu quero também o dos filhos e da esposa, e saber no mapa, a cidade onde nasceu. Agora dei por, quando vou a uma festa de amigos, procurar um chinês de pastelaria entre os convidados. Um certo sentimento de nazismo às avessas me toma: me relaciono com a calda espessa da miscigenação, mas o milenar e oriental, tão puro e uma mesma coisa, não participa. Esses, de nação distante, servem apenas para fritar pasteis, vender doce e dizer “tloco, tloco”. Eles não estão na universidade, nem nas eleições, poucas vezes num supermercado e algumas outras a jogar pipoca pras malditas pombas da Santos Andrade. “Claro, são eles que não se misturam , não aprendem a língua, se organizam em pequenas máfias de distribuidoras de doces e pastelarias” – você pensa surpreso. Mas o mistério engordurado do outro lado do balcão permanece. E eu continuo desejando um amigo chinês de pastelaria.

ressaca

Depois do amor
inundar,
veio este
seco silêncio
onde fui encalhar.

Eu sequei,
de tanto escoar.
Seco o céu,
seca a cama,
seco o doar.

Convoco saliva,
parece que
não vai dar.
Como não sou
baleia,
nem o greenpeace
vai ajudar.

Ressecada
e sem som:
espero
a maré
mudar.

Ou será,
esta secura,
um recuo
de tsunami
que voltará
para nos
inundar?

Infiltrado

Infiltrado

O amor é essa infiltração
no canto da sala.
O mofo preto pontilhando,
silencioso,
a branca aresta da parede.
O amor desaperfeiçoa
nossa pintura intacta.
Vai, aquoso, abrindo
caminhos inconcebíveis
no sólido,
na solidão.

Essa infiltração amorosa
no cantinho da sala
fungifica o aparente,
amolece o que mascara
e imprime
uma amorável paisagem
na casa.

Dia do pai

Pai, afasta de mim o próximo domingo.
É data comercial, bem sabemos.
Mas essa palavra,
que já não posso usar como vocativo,
por todos os lados.
E tu, ao lado de cartaz nenhum
estás.
Eu, que só visitei teu túmulo
uma única vez, pra trocar as
flores de plástico por um ramo
amarelo e fresco, não vou lá
com mais frequencia porque
moro longe.
E mais que isso,
porque te levo sepultado em mim.

Podia inumerar lembranças,
mas quero agradecer a tua ausência.
Por ela te reinvento e revisito
infinitas vezes.
Isso te me faz eterno.

Este poema, pai,
celebra tua ausência
que é toda a presença
que tenho de ti.